A RENAMO e suas mudanças ideológicas na guerra¹
Valdir Alves²
1. Introdução
Moçambique é um país da costa África Austral, situada na costa do oceano Índico, com cerca de vinte milhões de habitantes empobrecidos pela colonização portuguesa que desde seu início fez de Moçambique uma colônia de exploração.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo estava dividido entre dois grandes blocos econômicos, o capitalista e o socialista, as elites intelectuais moçambicanas, influenciadas por ideal marxista-lenista, fundaram a Frente de Libertação de Moçambique, (FRELIMO), que com exaustivas lutas contra os exércitos portugueses chegam ao poder em 1975, tornando Moçambique independente.
A FRELIMO que antes era apenas uma frente revolucionária agora tinha em suas mãos uma grande missão, um país com treze milhões de pessoas.
[...] mas as condições da luta e da vitória foram tais que os dirigentes da Frelimo herdaram o país sem nunca o terem visto confrontados com essa diversidade social, sem terem sido obrigados a assumi-la e a conceber politicamente os seus efeitos. Eles não dispunham praticamente de nenhum mecanismo político ou social de ligação que lhes permitisse reconhecer a existência dos diferentes componentes, por vezes contraditórios, da sociedade colonizada que lhes era dado governar...Foi de acordo com esta (falta de) perspectiva que foram formuladas os grandes eixos da “estratégia de desenvolvimento” do jovem estado para o mundo rural: a edificação das “aldeias comunais”. ( GEFFRAY, 1981;).
Paralelo as novas mudanças que vinham ocorrendo em Moçambique, chegam a Salisbury, capital da Rodésia, fugindo de Moçambique, comerciantes, pequenos proprietários, assim como ex-soldados.
Para a Rodésia, a independência de Moçambique constituía uma ameaça direta, pois dada a sua situação geográfica estava em condições de controlar o trânsito de grande parte das mercadorias importadas e exportadas, isso junto aos migrantes ressentidos e frustrados virou um ódio.
Este ódio, junto com incentivo financeiro vindo de países capitalistas como EUA, fez com que se formasse uma tropa mercenária essencialmente composta de antigos soldados, essa milícia era a Mozambique National Resistance, (MNR), que tinha como principal finalidade combater a expansão socialista em Moçambique
A Mozambique National Resistance, assim que chega a solos moçambicanos, para ganhar simpatizantes, deixa de utilizar a sigla em inglês passando a ser conhecida como Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO).
A partir de então, não só a sigla é modificada mas também suas ideologias no que diz respeito participação da RENAMO na Guerra.
A RENAMO, em sua gênese, por ser composta de pequenos burgueses falidos e ex-soldados portugueses, recebeu recursos bélicos internacionais para que estes militassem e Moçambique deixasse de ser um país comunista, voltando, assim, a viver em um regime monopolista.
Apesar de todo incentivo bélico e financeiro, a RENAMO logo deixou seus ideais capitalistas para trás. Um dos motivos foi a estratégia de sobrevivência em solos moçambicanos. A RENAMO começou a atuar em cima da frágil política de modernização da FRELIMO.
A FRELIMO criou políticas que proibiam as práticas religiosas alegando que tais práticas impediam o desenvolvimento de um país em fase de construção. Outro ponto crítico na política da FRELIMO foi a criação das aldeias comunais, que eram aldeias de uso coletivo onde tudo que fosse produzido era dividido para todas as comunidades. Neste período as comunidades rurais eram mais de 80% da população moçambicana.
Diante deste quadro a RENAMO viu a possibilidade de conseguir apoio perante as comunidades rurais. O discurso imprimido foi o de que todos que apoiassem a milícia teriam a liberdade de cultuar suas tradições e não teriam que sair de suas terras para cultivar em terras alheias, como era o propósito das aldeias comunais. Já que as tradições consistiam no cultivo das suas próprias terras.
A posição da mulher nestas tradições é de extrema importância, principalmente no que diz respeito a religião. Uma das múltiplas identidades assumida pelas mulheres moçambicanas é a de sacerdotisa. Este título é recebido através da possessão dos espíritos. Como diz Honwana, podemos considerar “os espíritos não só como agentes externos que controlam e mudam as identidades das pessoas, mas como a própria essência da identidade humana”.
Por ser a essência da identidade humana, estas mulheres que recebem em seus corpos os espíritos, acabam exercendo grande poder sobre a comunidade moçambicana. Poder que se estende sobre a RENAMO e até mesmo a FRELIMO.
A FRELIMO promove um discurso antitradicionalista, “rotulando-as [as tradições] de obscurantistas e superticionistas.” (HONWOANA, 2002). Imprimindo assim, uma ideologia na qual alegava que as práticas tradicionais não permitiriam a emancipação da mulher, ao contrário da RENAMO, que apoiava o exercício das práticas tradicionalistas
Porém, a situação na RENAMO não era a que os jovens esperavam. Faltavam armas, porque, ao contrário do que eles pensavam, a RENAMO não possuía um arsenal bem equipado como o da FRELIMO. As armas existentes eram apenas para os comandantes e soldados, o que significa que estes jovens não possuíam qualquer status de poder. Outros privilégios existentes também não eram compartilhados com eles, como a divisão dos saques feitos no território da FRELIMO e as mulheres capturadas, que eram divididas somente entre os comandantes e os considerados soldados.
Os novos recrutas, não eram considerados soldados, não possuíam armas de fogo e nem regalias, o que despertava o desejo de voltar para casa, abandonando a milícia. Para impedir que isto acontecesse a RENAMO aprisionava, torturava e matava muito destes jovens, ocasionando, assim, uma baixa significativa de combatentes.
Para recompor o seu exército, a RENAMO invadia as comunidades, que antes tinha jurado proteger, em busca de novos recrutas, o que gera um descontentamento dos parentes dos jovens. Para manter-se forte no combate a RENAMO começa a fazer investidas nas comunidades em busca de pessoas para serem integrantes da milícia.
Nestas investidas nas comunidades, eram seqüestrados crianças, mulheres e líderes espirituais, como foi o caso da líder espiritual Mwamadjosi que se tornou uma lenda. Segundo relatos, Mwamadjosi deu imunidade aos soldados que conseguiam tornar-se invisíveis diante dos soldados da FRELIMO, e imune a balas deflagradas por este.
Esta líder espiritual era respeitada até pelos líderes do governo. A história sobre esta mulher diz que ela alcançou um posto de oficial da RENAMO por causa das proezas alcançadas.
Diz-se que Mwamadjosi era muito competente na descoberta das posições das tropas do Governo e na protecção dos combatentes da Renamo. Ela organiza rituais para imunizar os rebeldes contra as balas antes de partirem para incursões militares. Na Manhiçavmuitos informantes reconhecem os poderes de Mwamadjosi, dizendo que ela conseguia que as balas dos soldados governamentais falhassem o alvo e que suas armas encravassem em pleno combate. Alguns adivinhos e curandeiros locais referiram-se às dificuldades que tiveram para neutralizar os poderes de Mwamadjosi, pois, segundo eles, ela tinha acesso a plantas especiais das florestas de Mambone (a cerca de 400 km de Manhiça). (HONWANA, 2002.)
Pouco a pouco a RENAMO foi perdendo sua ideologia inicial, pois via que a FRELIMO tinha dificuldade para implantar as novas mudanças sócio-políticas. Por ter uma política de orientação Marxista que direcionava para uma visão materialista da realidade social, deixava de fora todas as práticas tradicionais dos moçambicanos, tais como, as práticas de medicina tradicional como o nyanga (vulgarmente conhecido como curandeiro), e as práticas religiosas, tal como os rituais de chuva e da fertilidade, Kuphahla. Deixavam de lado também, o lobolo³ e as práticas poligâmicas.
A RENAMO obteve apoio da comunidade pois em seus discursos diziam que lutavam contra a FRELIMO, em busca de uma política que resgatasse as tradições, e a comunidade rural por ter perdido a confiança nos lideres da FRELIMO apoiaram, de início, a RENAMO.
No entanto, a comunidade rural não demorou a perceber que também não poderiam confiar na RENAMO, pois estes não tinham nenhum tipo de políticas. “Não estamos interessados em definir políticas (...) mais tarde teremos que delinear políticas, mas primeiros o comunismo tem que sair do nosso país. Está a matar-nos, temos que matar por tudo o que queremos. Matamos por comida, por comprimidos, por armas e munições”. (HONWANA, 2002).
Um pouco depois a RENAMO deixou também de ter como meta principal o combate ao regime comunista, usando a guerra pela guerra.
Um ponto contraditório na RENAMO é o fato de terem mulheres participando em situação de chefia, ao mesmo tempo em que outras mulheres, até mesmo mulheres de suas ex-comunidades, eram violentadas e tinham seus órgãos sexuais amputados tal como os seios, e narizes e orelhas.
4.Conclusão
Em linhas gerais, a RENAMO conseguiu permanecer viva na guerra civil em Moçambique por agir como um “vírus mutante” que em cada fase da guerra assumia uma ideologia. No início, era uma milícia com ideias capitalistas posteriormente uma milícia que tinha em seu bojo um “projeto político” que visava à gênese da tradição moçambicana, e por fim a guerra pela guerra.
A guerra termina com o Acordo Geral de Paz assinado em 1992. A RENAMO passa a participar das eleições em 1994. Ela perde com uma grande diferença de votos, mas se firma como partido político. Hoje a RENAMO é o segundo maior partido de Moçambique, ficando atrás da FRELIMO.
O presidente é Afonso Dhlakama, ex-comandante do exército que enfrenta forte rejeição popular no país, pois sua imagem ainda é associada aos antigos ideais do apartheid sul-africano, que foi um dos financiadores da milícia na guerra contra a FRELIMO. A RENAMO ocupa hoje um terço das cadeiras no parlamento.
5. Referências Bibliográficas
FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$frelimo- (frente-de-libertacao-de-mocambique)>.
GEFFRAY, Christian. A causa das Armas (Antropologia da Guerra contemporânea em Moçambique). Porto, Afrontamento: 1991.
HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Trad. Orlando Mendes; Promédia, 2002.
RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-06-13]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$renamo-(resistencia-nacional-mocambicana)>.
RENAMO (Partido Renamo: A Vitória é Certa!). Disponível em: http://www.renamo.org.mz/news.php
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Notas
¹Este artigo foi criado para a apresentação no Seminário Corpo e Cultura, realizado no Centro de Artes, Humanidades e Letras – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia –, no ano de 2010.
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Notas
¹Este artigo foi criado para a apresentação no Seminário Corpo e Cultura, realizado no Centro de Artes, Humanidades e Letras – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia –, no ano de 2010.
²Cientista Social em formação no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Educador de Ensino em Base Africana (EBA) no Grupo de Ação para Promoção Educacional Científico-Cultural (GAPECC). Membro do Grupo Corpo e Cultura da linha Corpo e Política. Membro também do Núcleo de Estudos Africanos do Recôncavo da Bahia (NEAB). Bolsista do CNPq, com o Projeto Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Políticas de Gênero e Sexualidade.
³Lobolo é uma prática tradicional da cultura moçambicana na qual o noivo oferece uma compensação material família da noiva, para que assim o casamento possa acontecer.